29.7.06

Por um pouco mais de tolerância

Por que os céticos se importam tanto com o que as outras pessoas acreditam ou deixam de acreditar? Por que céticos mantém sites, blogs, fórums, listas de discussão e sociedades secretas dedicados a desmontar idéias estapafúrdias? Por que empreendem esta batalha diária (ok, nem tão diária assim...bissexta no máximo), quixotesca e inesgotável contra a ignorância e o pensamento mágico? Será que os céticos não poderiam ser um pouquinho mais tolerantes com a credulidade alheia?

Afinal vamos ser honestos: qual é exatamente o problema em se acreditar em... <coloque aqui sua pseudociência favorita>? Afinal, se o sujeito acredita que a Lua cheia faz o cabelo dele crescer mais depressa, ou que a Mãe Fulana pode trazer aquela ex-namorada que lhe chutou a bunda, de volta em 3 dias... ora, que diabos! vamos deixá-lo em paz! Como diziam os garotinhos que vendiam balas nos ônibus do Rio de Janeiro (e agora fazem malarabismos nos sinais de trânsito), eles podiam estar matando ou roubando ou sacrificando virgens, mas em vez disso estão só professando sua fé.

Pois bem. Quando eu estou quase dando ouvidos às estas estranhas vozes na minha cabeça, é reconfortante encontrar a seguinte matéria no jornal:

Carta psicografada ajuda a inocentar ré por homicídio no RS

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LÉO GERCHMANN

da Agência Folha, em Porto Alegre


Duas cartas psicografadas foram usadas como argumento de defesa no julgamento em que Iara Marques Barcelos, 63, foi inocentada, por 5 votos a 2, da acusação de mandante de homicídio. Os textos são atribuídos à vítima do crime, ocorrido em Viamão (região metropolitana de Porto Alegre).
O advogado Lúcio de Constantino leu os documentos no tribunal, na última sexta, para absolver a cliente da acusação de ordenar o assassinato do tabelião Ercy da Silva Cardoso. Polêmica no meio jurídico, a carta psicografada já foi aceita em julgamentos e ajudaram a absolver réus por homicídio.

"O que mais me pesa no coração é ver a Iara acusada desse jeito, por mentes ardilosas como as dos meus algozes (...). Um abraço fraterno do Ercy", leu o advogado, ouvido atentamente pelos sete jurados.


O tabelião, 71 anos na época, morreu com dois tiros na cabeça em casa, em julho de 2003. A acusação recaiu sobre Iara Barcelos porque o caseiro do tabelião, Leandro Rocha Almeida, 29, disse ter sido contratado por ela para dar um susto no patrão, que, segundo ele, mantinha um relacionamento afetivo com a ré. Em julho, Almeida foi condenado a 15 anos e seis meses de reclusão, apesar de ter voltado atrás em relação ao depoimento e negado a execução do crime e a encomenda.


Sessão espírita


Não consta das cartas, psicografadas pelo médium Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz, a suposta real autoria do assassinato.
O marido da ré, Alcides Chaves Barcelos, era amigo da vítima. A ele foi endereçada uma das cartas. A outra foi para a própria ré. Foi o marido quem buscou ajuda na sessão espírita. O advogado, que disse ter estudado a teoria espírita para a defesa (ele não professa a religião), define as cartas como "ponto de desequilíbrio do julgamento", atribuindo a elas valor fundamental para a absolvição. A Folha não conseguiu contato com o médium. Os jurados não fundamentam seus votos, o que dificulta uma avaliação sobre a influência dos textos na absolvição. Os documentos foram aceitos porque foram apresentados em tempo legal e a acusação não pediu a impugnação deles.

Polêmica

A adoção de cartas psicografadas como provas em processos judiciais gera polêmica entre os criminalistas. A Folha ouviu dois dos mais importantes advogados especializados em direito penal no Rio Grande do Sul. Um é contra esse tipo de prova. O outro a aceita.
De acordo com Antônio Dionísio Lopes, "o processo crime é uma coisa séria, é regido por uma ciência, que é o direito penal. Quando se fala em prova judicializada, o resto é fantasia, mística, alquimia. Os critérios têm de ser rígidos para a busca da prova e da verdade real".

"O Tribunal do Júri se presta a essas coisas fantásticas. O jurado pode julgar segundo sua convicção íntima, eles não têm obrigação de julgar de acordo com a prova. A carta só foi juntada aos autos porque era um tribunal popular. Isso é o mesmo que documento apócrifo."


Para Nereu Dávila, "qualquer prova lícita ou obtida por meios lícitos é válida. Só não é válida a ilícita ou obtida de forma ilícita, como a violação de sigilo telefônico. Quanto à idoneidade da prova, ela será sopesada segundo a valoração feita por quem for julgar. Ela não é analisada isoladamente, mas em um conjunto de informações. Os jurados decidem de acordo com sua consciência.
Sim, vamos respeitar as idéias alheias. E no futuro, quando você estiver no banco dos réus, talvez uma carta psicografada possa absolvê-lo. Quer saber? Talvez no futuro as autoridades gaúchas possam empregar, além do polígrafo, a brincadeira do copo, ou um tabuleiro Ouija apropriadamente estampado com mulheres vendadas e outros ícones judiciários. Claro, sempre há o risco de que o juíz esteja mais inclinado a aceitar os depoimentos de algum "especialista" em tarô convocado pela acusação... ou que o honorável Meritíssimo simplesmente resolva a contenda usando um pêndulo, ou uma forquilha, ou um baguá. Mas, aconteça o que acontecer, não se preocupe em ser vítima de um veredicto injusto: tribunais cuidadosamente decorados segundo os príncipios milenares do feng-shui certamente trarão mais "energia positiva" aos jurados e assegurarão julgamentos justos.

Ufa! são notícias como essa que reestabelecem minha fé na ignorância humana e me fazem esquecer toda essa ridícula conversa relativista sobre tolerância e respeito às idéias alheias.

De volta ao Blog.

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