19.5.07

O Guia Cético para assistir a “What the Bleep do We Know?” - Parte 3

Na primeira parte desta trilogia apresentei as pessoas -- e o espírito -- responsáveis pelo polêmico documentário "What a Bleep Do We Know". Na segunda parte analisei a primeira metade do filme e apontei alguns dos erros que ele comete ao usar a Física Quântica para justificar as crenças místicas da seita Ramtha. Nesta terceira parte analiso o restante do filme e concluo tentando entender os motivos que levaram "Quem Somos Nós" a se tornar tão popular.

Vamos então ao tão aguardado Guia Cético para assistir a “What the Bleep do We Know?” - O Retorno de Ramtha.


0:33:34


A exibição do metrô vem do Japão e do Sr. Masaru Emoto. Masaru Emoto tornou-se tremendamente interessado na estrutura molecular da água e no que a afeta. A água é o mais receptivo dos quatro elementos. Mr Emoto pensou que talvez ela pudesse responder a eventos não físicos. Assim ele realizou uma série de estudos, aplicando estímulos mentais e fotografando-a em um microscópio de campo escuro.

A primeira figura é uma foto de água da represa de Fujiwara. E esta figura é a mesma água após receber uma benção de um monge budista. Agora, na próxima sequência Emoto imprimiu palavras nas garrafas de água destilada e as deixou da noite para o dia. A primeira figura é uma fotografia de água destilada -- só a essência de si mesma. As fotografias sequintes são diferentes: a primeira é o "Chi do Amor", a seguinte é "Obrigado". E você pode ver onde isso foi escrito aqui. (...) A ciência sobre como isso efetivamente afeta as moléculas é desconhecida, excepto para as moléculas da água evidentemente... E isso é realmente fascinante quando se tem em mente que 90% dos nossos corpos é formado de água.


Como num filme de David Lynch, um tipo sinistro sai da multidão e, encarando Amanda fixamente, diz:

Faz você pensar não é? Se os pensamentos podem fazer isso com a água imagine o que podem fazer conosco...


Então chegamos a Masaru Emoto.

Masaru Emoto, formado em Relações Internacionais no Japão, PhD em medicina alternativa na Índia, autor do livro "Messages From Water", acredita que a água reage às emoções ao redor dela: quando exposta à emoções positivas, a água se congela formando cristais belos e ordenados, mas se exposta a sentimentos considerados (por Emoto) como negativos sua estrutura cristaliza-se de maneira feia e desorganizada.

Além disso Emoto acredita que a água tratada com palavras amáveis e orações em vez de cloro e flúor, pode matar a sede mais eficientemente, melhorar a circulação sanguínea e o regular o metabolismo. Por isso inventou a revolucionária Água Indigo, uma água “geometricamente perfeita”, que promete as maravilhas acima e muitas outras pelo preço de um perfume francês: U$ 35,00 a garrafinha de 230 ml.

Tudo isso eu já escrevi há algum tempo atrás quando dediquei um post a Masaru Emoto. Na época eu não imaginava o papel central que as idéias de Emoto tinham em "What a Bleep Do We Know" (veremos isso adiante) e nem tinha a noção da enorme popularidade que ele alcançaria, catapultado pelo sucesso do filme.

Como vimos naquele post, o maior -- mas não o único -- impedimento para tentar levar Emoto à sério é que ele não usa testes duplo-cego. Duplo cego é um procedimento que visa evitar qualquer parcialidade do pesquisador, voluntária ou não. Como quando estão estudando a eficência de uma nova droga e os médicos misturam entre as pílulas reais algumas pílulas falsas, chamadas de placebo, de maneira que nem o médico nem o paciente sabem, de antemão, quem está tomando o quê. Um teste duplo-cego é simplesmente uma maneira de se testar uma alegação com a máxima honestidade. É por isso que é usada pelos pesquisadores que querem convencer a comunidade científica de seus resultados mais do que apenas ganhar dinheiro com eles.

Pois Emoto não só não realiza testes duplo-cego como já respondeu em uma entrevista recente que “não entende muito bem esse negócio de duplo-cego”! Em vez da inconveniente imprevisibilidade de um teste duplo-cego Emoto prefere contratar assistentes com um "acurado senso estético", que possam fotografar os cristais em um ambiente livre de pressões. Isto quer dizer que quando um assistente de Emoto fotografa um cristal de água, ele sabe tanto o que aconteceu à água, quanto o que acontecerá a ele se não fotografar o resultado que Emoto espera. Como numa única gota d'água pode haver milhares de microscópicos cristais se formando, sempre será possível encontrar cristais bonitos e feios, dependendo de como se procure.

O mágico James Randi já ofereceu 1 milhão de dólares a Emoto caso ele reproduzisse seus resultados usando uma metologia realmente científica. Não é surpresa que Emoto tenha recusado: alguém que vende água por quase R$ 100,00 o copinho não deve estar precisando de dinheiro não é?

Voltemos ao filme: a narradora nos diz que a “água é o mais receptivo dos quatro elementos”. Ora, a idéia de que o mundo é formado por 4 elementos -- fogo, água, terra e ar – remonta à Aristóteles e tem a ver com a química moderna tanto quanto colocar sanguessugas sobre talhos na pele de um paciente tem a ver com a medicina moderna. E alguém aí sabe o que pode ser um “elemento receptivo”? um doce para quem encontrar esta propriedade química na tabela periódica.

Existe ainda outra idéia falsa camuflada neste trecho do filme: a premissa de que tudo o que afeta a água afeta igualmente o nosso corpo, já que ele formado em grande parte por esse líquido. Os astrólogos, por exemplo, amam com paixão esta idéia: ora, se a Lua tem tamanha influência sobre as marés, como poderia não influenciar também nosso corpo? justificam-se. (Acontece que a força gravitacional, que causa as marés, é pequena demais para ser percebida a não ser que grandes massas estejam envolvidas, como é o caso entre a Lua e os oceanos. É por isso que, assim como o nível do seu copo de cerveja -- que também é composto em grande parte de água -- não sobe de acordo com a fase da lua, o nosso corpo tampouco sofre a ação de nenhuma espécie de "maré corporal", ou algo do gênero). É esta a falácia que o filme apresenta quando o tal sinistro personagem pergunta: “Faz você pensar não é? Se os pensamentos podem fazer isso na água imagine o que podem fazer conosco...”.

E o mais grave: as experiências de Emoto são feitas com água congelada e felizmente nós não temos água congelada no nosso corpo. Resta supor que a água prediposta a se solidificar de maneira esteticamente agradável é mais saudável do que a água microscopicamente feia. No entanto, note que nenhuma relação entre saúde e beleza foi estabelecida pelo filme. Quando o tal personagem misterioso diz “Se os pensamentos podem fazer isso na água imagine o que podem fazer conosco...” ele espera que o espectador preencha esta lacuna lógica com pura imaginação, não com fatos. Quando colabora, o espectador não percebe que está sendo vítima do que, em inglês, se dá o nome de "wishfull thinking", que em portugês não dá para traduzir muito melhor do que "crença movida pelo desejo".

A propósito, a não ser que você seja o Bob Esponja você não é formado por 90% de água. A percentagem correta do líquido nos seres humanos é de pouco menos de 80% nos recém nascidos, 60% em homens adultos e 55% nas mulheres.


0:36:31


Se você aceitar com todas as forças do seu ser que você pode andar sobre a água, o que acontecerá? Sim, você vai andar! Mas você sabe, é como, uh, é como o pensamento positivo funciona. É uma idéia maravilhosa o pensamento positivo, mas o que ele normalmente significa é que nós temos um pequeno lampejo de pensamento positivo encoberto por toda uma massa de pensamento negativo. Logo, o pensamento positivo nunca é pensamento positivo mesmo, é só o pensamento negativo que temos mascarado...

Aqui o filme leva ao extremo a idéia do pensamento positivo, afirmando que uma pessoa pode literalmente levitar sobre a água desde que aceite com todas as forças do seu ser que pode fazer isso.

Michael Ledwith não está no filme para falar de ciência. Como ex-padre, o papel de Ledwith em "What a Bleep Do We Know" é de Consultor para Assuntos Religiosos: sua pequena participação se resume a este trecho enaltecendo o pensamento positivo e outras rápidas passagens em que divaga sobre a natureza de Deus. No entanto sua aparição revela uma das maiores estratégias de "What a Bleep Do We Know": inserir calculadamente os assuntos esotéricos e as opiniões puramente pessoais em meio às discussões "científicas" para dar ao pacote todo uma aparente cientificidade e criar a ilusão de que estes temas estão entrelaçados. Foi desta maneira que "What a Bleep Do We Know"conseguiu ser aclamado como um "documentário de física quântica" falando tão pouco sobre física.


0:51:02

Mais ou menos a partir dos 40 minutos "What a Bleep Do We Know" dá uma virada. A Física Quântica, que vinha sendo o tema principal do filme, é substituída pela Neurociência e só volta a ser citada bem no finalzinho. A partir deste ponto o quiroprático Joe Dispenza toma as rédeas e conduz o documentário praticamente sozinho com raras intercalações de seus companheiros de seita. Com isso a ciência -- que já era rala -- vai ficando ainda mais diluída em meio a extrapolações morais, discussões religiosas e sermões sobre como viver a vida. Finalmente, como se removesse um véu de sobre a última camada do filme, Joe revela o que "What a Bleep Do We Know" realmente é: um documentário de auto-ajuda.

Com a palavra, Joe Dispenza:

O cérebro, quando dispara seus pensamentos, é como uma planície sob um temporal. E o emaranhado de sinapses são como o céu entre... a tempestade e a Terra. Você vê esta nuvem negra no céu e você vê os impulsos elétricos se movendo por eles e então você vê eles atingirem o solo. O cérebro se parece com uma tempestade, quando formulando um pensamento coerente. Mas ninguém vê um pensamento, o que se vê é uma tempestade açoitando diferentes quadrantes do cérebro. Estas áreas devem estar respondendo à imagens holográficas -- raiva, assassinato, ódio, compaixão, amor.

O filme mostra as lembranças ruins de Amanda disparando em seu cérebro uma autêntica tempestade de raios (o que faz o termo "brainstorm" deixar se ser apenas uma figura de linguagem).

Mas o cenário de uma planície de massa cinzenta açoitada por uma tempestade de relâmpagos entre nuvens de neurônios, embora empreste à cena a dramaticidade que o filme busca, é -- surpresa! -- bastante incorreta. Os estímulos nervosos não são transmitidos através de arcos voltaicos como relâmpagos e sim quimicamente através de substâncias chamadas de neurotransmissores.


0:52:17

Joe Dispenza novamente:

O cérebro não sabe a diferença entre o que ele vê no ambiente e o que ele lembra. Porque os mesma rede neural é ativada.


Estudos mostram que a mesma área do cérebro é ativada quando você vê uma maça e quando pensa em uma maça. Isso parece ser confirmado pela nossa experiência, uma vez que a lembrança de uma suculenta maçã geralmente dispara nossas células salivares tanto quanto a visão de uma. Mas será que isso significa que o cérebro não sabe a diferença entre uma maça de verdade e a lembrança de uma maçã? Não, isso não é verdade.

Estudos mostram que embora as mesmas áreas do cérebro sejam ativadas, esta atividade é muito menor quando imaginamos uma coisa do que quando olhamos para esta coisa, sendo que esta atividade é tão menos intensa quanto menos vívida for a lembrança. Ou seja, existe uma diferença quantitativa nas áreas ativadas no nosso cérebro quando imaginamos algo e quando o vivenciamos. E isso faz toda a diferença.


0:55:39

E assim, sem mais nem menos, o físico John Hagelin aparece em cena por menos de 3 segundos, para dizer:


A mais sofisticada fármacia do universo está aqui.




Logo em seguida, Joe continua:

Existe uma parte do cérebro chamada de hipotálamo... o hipotálamo é como uma mini fábrica e é o lugar onde são montadas certas substâncias químicas que correspondem a certas emoções que vivenciamos. E estas substâncias em particular são chamadas de peptídeos. Eles são pequenas cadeias de amino-ácidos. O corpo é basicamente uma unidade de carbono... que constrói 20 diferentes aminoácidos para formular sua estrutura física. O corpo é uma máquina de produzir proteínas. No hipotálamo nós pegamos estas pequenas cadeias de aminoácidos chamadas peptídeos e os montamos em certos neuropeptídeos ou neurohormônios que correspondem aos nossos estados emocionais que experimentamos no dia a dia. Assim há substâncias para raiva e há substâncias para tristeza e há substâncias para vitimização e para luxúria. Há substâncias químicas para cada emoção que experimentamos. E no momento em que vivemos aquela emoção o hipotálamo imediatamente monta o peptídeo correspondente e o libera na corrente sanguínea. Nesta hora o peptídeo encontra o caminho até as diferentes partes do corpo. Agora, cada célula do nosso corpo possui estes receptores do lado de fora...

Como vimos, os sinais nervosos não são transmitidos através de arcos voltaicos como o que acende o gás do seu fogão, e sim através de substâncias químicas chamadas de neurotransmissores. Uma das categorias de substâncias que agem como neurotransmissores são os peptídeos, que nada mais são do que proteínas pequenas.

Acontece que sintetizar neutransmissores não é somente uma questão de fé ou de treinamento como o filme parece sugerir (ainda que não o diga explicitamente). O que na verdade é uma pena, senão várias doenças poderiam ser curadas apenas com tratamento psicológico ou com o consumo de material de auto-ajuda. Casos clínicos de depressão, doença associada a baixos níveis de neurotrasmissores como a serotonina, curar-se-iam simplesmente com doses controladas do vídeo de "Everybody is Free (to Wear Sunscreen)"; o Mal de Parkinson, relacionado ao menos parcialmente a uma disfunção no peptídeo amilóide beta, poderia ser curado simplesmente com sessões de análise em um bom psicoterapeuta e a diabetes, outro mal associado a deficiência na síntese de uma substância geralmente considerada um peptídeo -- a insulina -- poderia ser curada com livros do Paulo Coelho. Doloroso, mas não tanto quanto conviver com a doença.

Por fim o filme erra mais uma vez ao afirmar que o corpo sintetiza os 20 aminoácidos usados para montar os peptídeos. Nosso corpo é capaz de sintetizar apenas 12 aminoácidos; os outros 8 precisam ser consumidos na alimentação (nossa farmácia corporal pode ser sofisticada, mas não é autosuficiente).


1:00:12

Cada célula está definitivamente viva e cada célula tem uma consicência, particularmente se definirmos consciência como o ponto de vista de um observador. Sempre existe a perspectiva da célula. Na verdade, a célula é a menor unidade de consciência do corpo.

Candice Pert afirma que as células nervosas do nosso corpo são criaturas conscientes "do ponto de vista do observador" e que o ser humano é na verdade a soma da consciência dessas minúsculas gelatinosas criaturinhas com uma infeliz tendência a se tornarem viciadas em peptídeos.

O conceito de consciência é vasto e possui pelo menos uma dúzia de definições diferentes, todas exigindo de algum jeito a habilidade de perceber à si mesmo. Acho que todos concordamos que afirmar que uma célula está ciente de sua própria existência é ir um pouco longe demais em qualquer direção.

Este ponto também demarca o início do trecho mais insuportável de "Quem Somos Nós": quando o filme inventa a categoria de "comédia new age pastelão", com direito até a um inacreditável musical com pedestais de soro fisiológico.


1:15:00

Nossa mente literalmente cria nosso corpo. (...) Uma das coisas sobre os receptores é que eles mudam sua sensibilidade. Se o receptor para uma certa droga, ou fluido interno está sendo constantemente bombardeado por um longo período de tempo, com alta intensidade, ele vai literalmente se tornar menor. Haverá menos deles. Assim, a mesma quantidade da substância, ou do fluido interno, causará uma resposta muito menor.

Logo em seguida Joe Dispenza retoma o bastão e prossegue:

Se nós bombardeamos a célula com a mesma atitude e a mesma substância química diariamente, quando aquela célula decide se dividir, quando ela produz uma célula filha, esta possuirá mais receptores para aquele neuropeptídeo particular e menos receptores para vitaminas, minerais e nutrientes.

Ou seja, Candice Pert diz que o bombardeio constante diminui a quantidade de receptores das células, enquanto Joe Dispenza afirma que isso aumenta a quantidade de receptores. Um dos dois tem que estar errado.

De um jeito ou de outro o raciocínio de Joe é inválido: as células do sistema nervoso não se dividem através de mitose, ou seja, não se reproduzem formando células filhas que herdam as características genéticas da mãe.


01:18:00

Eis que o professor Willian Tiller aparece em cena dizendo nada mais do que...

Ok, pessoal, é hora de um ajuste de curso na trajetória ao longo do caminho de nossa aventura. E este ajuste de curso é o movimento para um novo paradigma, uma expansão do antigo -- tal qual o universo é maior do que pensamos que era em nossa modelagem, e é sempre maior do que pensamos que é.

Este é um perfeito exemplo de como os diretores de "What a Bleep Do We Know" editaram o filme mais interessados no efeito dramático do que no conteúdo. Descolado de qualquer contexto este trecho não quer dizer bulhufas; na sequência serve apenas como escada para uma gag infame: comparar o tamanho do universo com o tamanho com que Amanda imagina a si mesma diante do espelho, na cena seguinte.


01:18:19




Eu te odeio!





Aos berros Amanda ataca sua imagem no espelho com um tubo de pasta de dente, até ficar esgotada. Neste momento um gota d'água chama sua atenção e isso traz a lembrança daquele personagem misterioso do metrô dizendo: "Faz você pensar não é? Se os pensamentos podem fazer isso com a água imagine o que podem fazer conosco...".

Aparentemente Amanda decide colocar em prática a teoria de Emoto pois passa a desenhar por toda a sua pele iloveyous circundados por coraçõezinhos encaracolados, da mesma maneira que Emoto escrevia nos rótulos das suas garrafas d'água. A música vai caminhando para um ápice triunfal ao mesmo tempo que Joe Dispenza desfila em off o mais longo e emocionado discurso de auto-ajuda até então. Algum tempo depois Amanda mergulha numa banheira, purificando-se, e a água ganha o foco, remetendo a Emoto novamente.

É interessante notar como depois de tanto tempo explorando as estranhezas da física quântica e a química do cérebro, nem quantuns nem peptídeos receberam o crédito pela transformação de Amanda, e sim o que parecia ser um tema periférico: a água sentimental de Masaru Emoto.


01:25:51

[Ramtha] Qual o único planeta da Via Láctea habitado? imerso em uma enorme dominação religiosa? Você sabe o porque disso? Porque as pessoas tem idéias erradas sobre o que é certo e errado.


Ramtha revela que a Terra é o único planeta habitado da Via Láctea, algo que aparentemente já era sabido na Lemúria há 35.000 anos atrás.

Errr... mas e daí? Estima-se que existam cerca de 125 bilhões de galáxias como a Via Láctea no universo, isso ainda nos deixa com outras 124.999.999.999 galáxias para procurarmos por vida inteligente. Aliás se o espírito sabe algo que não sabemos por que não nos diz de uma vez para qual galáxia apontar nossos rádiotelescópios?


01:28:52

Se nós estamos conscientemente projetando nosso destino e se somos conscientes, de um ponto de vista espiritual, e aceitamos a idéia de que nossos pensamentos afetam a realidade, ou afetam nossa vida -- porque realidade é igual à vida -- então eu tenho este pequeno pacto que uso ao criar meu dia:

Eu digo: "Eu estou usando este tempo para criar meu dia e eu estou afetando meu campo quântico. Agora, se o observador está realmente me observando durante todo o tempo em que faço isso... e há um aspecto espiritual em mim mesmo, então me dê um sinal de que você prestou atenção a todas estas coisas que criei, e me as traga de uma maneira que eu não esteja esperando. Assim eu ficarei tão surpreso com a minha habilidade de ser capaz de vivenciar estas coisas que não terei dúvidas de que elas vieram de você"

Se eu precisasse extrair um único trecho de "What a Bleep Do We Know" para caracterizá-lo, eu escolheria este.

Aqui Joe, que se estabeleceu como o verdadeiro guru de "What a Bleep Do We Know", deixa aos espectadores um pequeno, mas emocionado, tutorial de auto ajuda que mistura espiritualidade disfarçada de física quântica, oração disfarçada de pensamento positivo e Deus disfarçado de Observador.

Acho que nenhum outro trecho sintetiza tão bem como este a macarronada místico-religiosa disfarçada de ciência e embalada como guia prático de auto-ajuda que "What a Bleep Do We Know" de fato é.


1:31:33

Sua consciência influência os outros ao seu redor. Influencia as propriedades dos materiais. Influencia seu futuro. Você está co-criando seu futuro.


Isto é dito em off por Willian Tiller, PhD, professor do departamento de Ciência dos Materiais da Universidade de Stanford. (Como eu já fui aluno, e mais tarde professor, do mesmo departamento que Tiller, só que em outra respeitada instituição, este trecho é o meu favorito em todo o filme)

Acredite em mim, você não ia querer viver num mundo onde as propriedades dos materiais fossem afetadas pela consciência das pessoas ao redor deles. Viajar de avião, por exemplo, seria muito mais perigoso se a resistência do aço pudesse ser afetada pela consciência dos passageiros -- imagine as aeromoças sendo obrigadas a dizer: "senhores passageiros, a partir de agora não são mais permitidos telefones celulares, aparelhos eletrônicos nem pensamentos infelizes". Blecautes seriam muito mais comuns se, além dos incêndios, os pensamentos da população vivendo próxima às torres de alta-tensão também pudessem afetar a resistividade elétrica do cobre; e eu não quero nem pensar no que aconteceria com as propriedades químicas do urânio se uma pessoa com problemas conjugais fosse admitida em uma usina nuclear.


1:38:19

[continuando o trecho anterior] Como medimos os efeitos? Vivemos a vida e vemos se alguma coisa mudou. E se ela tiver mudado então nós nos tornamos os cientistas da nossa vida... o que é o motivo pelo qual estamos aqui.


Esta é a cena em que Amanda -- a nova Amanda, purificada por sua jornada -- decide que não precisa mais de seus remédios e os joga no lixo.

Enquanto advoga o pensamento positivo e incentiva as pessoas a adotarem uma atitude de vida mais pró-ativa e responsável, ainda que baseando-se em conceitos distorcidos de física e biologia, "What a Bleep Do We Know" é relativamente inofensivo -- e até inspirador -- para o espectador com um handicap crítico. Mas no momento em que sugere que alguém pode se tornar "o cientista de sua vida" e abandonar por conta própria sua medicação, o filme comete seu pecado mais grave.

Existem doenças cujos sintomas vão e vem ciclicamente, assim como existem doenças cujos sintomas podem ser temporariamente aliviados por analgésicos naturais liberados pelo nosso organismo em momentos de euforia (como após um bom filme de auto-ajuda). Interromper um tratamento por causa de uma fugaz sensação de alívio é temerário; inspirar alguém a fazê-lo é irresponsável. Alguns antibióticos, por exemplo, não podem ser interrompidos no meio do tratamento sob o risco de que a doença retorne agravada. E há medicamentos que se interrompidos bruscamente causam mais complicações do que uma simples recaída.


Créditos Finais

Há uma piada que diz que o paraíso é um lugar onde a polícia é inglesa, os cozinheiros são franceses, os mecânicos são alemães, os amantes são italianos e tudo é organizado pelos suíços, enquanto o inferno é um lugar onde a polícia é alemã, os cozinheiros são ingleses, os mecânicos franceses e os amantes são suiços, sendo tudo organizado pelos italianos.

Quando chegam os créditos de "Quem Somos Nós" e as credenciais dos cabeças falantes são reveladas o obsevador atento fica com a sensação que passou os útlimos 90 minutos numa espécie de inferno europeu. Em vez de físicos falando de física, médicos falando de medicina e padres falando de Deus, o espectador descobre que passou a maior parte do tempo ouvindo físicos falando sobre Deus, um quiroprático e um médico (ainda graduando em Física) falando sobre física, um físico falando sobre medicina, um padre falando sobre pensamento positivo e uma ex-dona de casa, atualmente líder de uma seita, falando sobre Deus, moral, ética e vida em outros planetas. Tudo isso amalgamado por uma edição maliciosa que alternou new-age e ciência como se fossem farinha do mesmo saco, isolando e tirando de contexto as frases de uma para concluir os pensamentos de outra.


Epílogo

Chegamos finalmente ao desfecho de "O Guia Cético para assistir a 'What the Bleep do We Know?'”. Ao longo desta trilogia acompanhamos Amanda por sua jornada à "toca do coelho" para encontrar as respostas para "quem somos nós", "de onde viemos" e "para onde vamos". Depois de dolorosos 90 minutos em que não vimos nem respostas nem coelho, somos obrigados a concluir que essa péssima analogia se deve a "What a Bleep Do We Know" ter manipulado o espectador, acenando com ciência em uma mão enquanto com a outra tirava da cartola algo completamente diferente.

Sim, "Quem Somos Nós" é um filme que engana deliberadamente quem o assiste porque oferece a ele um suposto encontro entre ciência e espiritualidade mas em vez disso entrega um frankenstein torto e desconexo de ciência de desenho animado, pseudociência e auto-ajuda, que a maior parte do público leigo não está equipada para identificar. Assistir a "Quem Somos Nós" esperando ver um casamento entre ciência e espiritualidade é como observar alguém tentando encaixar cubos e tetraedos em orifícios circulares; para encaixar-se às crenças esotéricas de seus idealizadores, cada simples fato científico usado em "Quem Somos Nós" precisou ser vergado, torcido e marretado com força.

Os mais enganados foram aqueles que foram ao cinema esperando ver em "Quem Somos Nós" um documentário de ciência de verdade. Destes, alguns reconheceram o engodo -- a maioria antes dos primeiros 15 minutos de filme -- mas outros estão até agora deslumbrados, como se tivessem visto o "Cosmos" da sua geração. É bem verdade que há um aspecto positivo nisso: para muita gente "Quem Somos Nós" significou o despertar por um interesse genuíno pela ciência, ainda que de forma enviesada. Com sorte estas pessoas logo estarão buscando mais informações sobre universos paralelos, viagens pelo tempo, antimatéria e outras estranhezas apaixonantes da física em fontes verdadeiramente confiáveis, como o livro "O Universo Elegante" de Brian Greene (cujo documentário, conduzido pelo próprio Greene, pode ser encontrado na sua rede P2P favorita com legendas em português de portugal) ou "Alice no País do Quantum" de Robert Gilmore (que vai mais fundo na metáfora de Lewis Carrol do que só chupá-la de Matrix). É mais ou menos como despertar o gosto pela leitura lendo Paulo Coelho para um dia chegar a gostar de Umberto Eco.

Mas houve aqueles que reconheceram em "What The Bleep Do We Know" o que ele é realmente: um poderoso documentário de auto-ajuda. Para estes a falta de rigor científico de "Quem Somos Nós" não é o fim do mundo. Ora... que se dane que "Quem Somos Nós" traga um bando de cientistas sem credibilidade discutindo questões fundamentais do universo em takes de 15 segundos que parecem ter sido editados aleatoriamente pelo esquilo frenético de "Os Sem Floresta", uma senhora com sotaque engraçado e ar teatral encenando monólogos que quase nunca fazem muito sentido e muitos, muitos erros... Para uma legião de cultuadores o que importa é que "Quem Somos Nós" traz uma mensagem motivadora, positiva, "alto astral", que devolve às pessoas que o assistem o sentimento de que elas estão no controle de suas vidas e não ao capricho do acaso ou da misteriosa vontade divina, cuja escrita é mais torta do que gostariam.

O efeito é tão inebriante que alguns são até mesmo capazes de aceitar com muita naturalidade lições de física transmitidas pelo espírito de um guerreiro que viveu num continente mítico, falando através da líder de uma seita bizarra. Na verdade, para estas pessoas tanto faz se quem lhes fala diz ser um cientista, uma dona de casa, um fantasma lemuriano ou um smurf, desde que a mensagem seja emocionalmente agradável.

Se você é uma dessas pessoas, tudo bem. Esqueça a ciência de mentirinha de Ramtha e mergulhe de cabeça na mensagem bacana do filme. Sim, pense positivo, lembre-se dos elogios que você recebe, esqueça os insultos, guarde suas velhas cartas de amor, jogue fora seus velhos extratos bancários, use filtro solar... e tudo o mais. Qualquer artíficio mental que lhe permita internalizar a busca pela felicidade deve ser bem vindo, receba ele o nome de "pensamento positivo", "Deus", "Observador" ou "campo quântico".

Assim mesmo há algumas coisas que você não deveria fazer, mesmo tendo gostado muito de "What a Bleep Do We Know". Por exemplo, você não deveria tentar andar sobre a água em lugares fundos, sobretudo se não souber nadar. Lembre-se de sempre praticar o pensamento positivo em bacias, chafarizes e na beira da praia. E nunca jogue seus remédios no lixo por conta própria. Só quem deve interromper seu tratamento é o seu médico. Sem acompanhamento médico um quadro simples pode evoluir para uma situação crítica e se a coisa chegar a este ponto... bem, aí você vai ter que apostar todo o seu pensamento positivo na única técnica milenar que já se mostrou capaz de adiar a morte: a ciência.


The End.

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