Para aqueles que ainda duvidam que a religião é uma invenção puramente humana e que não perceberam que, como diz aquela música bonitinha da
Corine Bailey, "
The more things seem to change The more they stay the same", é bom dar uma conferida nos
noticiários. Há alguns dias esperava-se que o Papa Bento XVI fosse
desinventar o
Limbo:
"O Papa celebrou uma missa com os integrantes da comissão na manhã de sexta-feira, mas, ao contrário do que especulava a imprensa, ele não mencionou o conceito do limbo na homilia e não anunciou nenhuma decisão. Havia informações de que o Papa aboliria o limbo na sexta-feira, mas um participante, o arcebispo italiano Bruno Forte, disse que os 30 integrantes da comissão ainda estão ajustando o texto do documento.
- Ainda estamos trabalhando no documento. Acho que vamos estar prontos para entregá-lo a ele até 2007 - disse ele à Reuters por telefone depois da missa."
Para quem não sabe o Limbo é uma região, entre o Céu e o Inferno aonde vão parar aqueles que não foram batizados, como os bebês que morreram muito cedo e todos aqueles que tiveram a infelicidade de morrer antes que o batismo fosse inventado.
O que acontece é que na logística celestial os não-batizados são um estorvo. Não se pode admiti-los no céu mesmo que tenham feitos as melhores ações na Terra uma vez que ainda carregam o pecado primordial (por causa da maldita desobediência de Adão e Eva). Mas também não parece certo mandá-los para o Inferno já que um bebê que mal nasceu não fez nada ainda para merecer a danação eterna. Por isso acreditava-se que os não-batizados eram enviados para o Limbo, uma espécie de ante-sala do céu, onde eles simplesmente aguardavam, por toda a eternidade.
Você não vai encontrar nada sobre o Limbo nas escrituras sagradas. Na verdade o Limbo foi inventado no século XIII por Peter Abelard, um filósofo escolástico francês. Antes disso ensinava-se que o bondoso Deus enviava os bebês não-batizados para queimar nas chamas do inferno por toda a eternidade. Mesmo sem nunca ter sido parte da doutrina oficial da Igreja, o Limbo era parte da tradição católica. Pelo menos um papa já se referiu a ele sem papas na língua (o trocadilho à la Engenheiros do Hawaii foi sem querer): em 1905 o papa Pio X afirmou com todas as letras que "As crianças que morrem sem batismo vão para o limbo, onde não têm contato com a graça de Deus mas também não sofrem". Agora o Papa Bento XVI afirma que o limbo é apenas "uma hipótese teológica" e "não uma verdade da fé". Um dos dois deve estar errado. Por falar nisso, o que aconteceu com a infalibilidade papal? Seria ela também uma hipótese?
O grande problema para os cristãos é que se o Limbo pode ser desinventado com uma canetada papal o que virá depois? O purgatório será fechado? O Capeta deixará de ter chifres? A Santíssima Trindade deixará de ser uma trindade? Aos que se inquietam diante de uma Igreja que tem
hipóteses como as de sua contraparte, a Ciência, em vez de verdades absolutas, é sempre bom lembrar que os dogmas da Igreja não nasceram prontos, mas foram
inventados por outras canetadas históricas, às vezes muito mais controversas. A questão da
multiplicidade de Jesus é um bom exemplo.
Na idade das trevas a Igreja Católica vivia um excruciante dilema: quantos
aspectos tinha Cristo? Ou melhor: teria sido Jesus Cristo
ao mesmo tempo Deus e homem ou havia duas entidades distintas habitando o mesmo corpo: o Jesus homem e o Jesus filho de Deus?
Pode não parecer, mas isso faz toda a diferença. Para começar, se a divindade de Cristo fosse destacada de sua humanidade isso significaria que apenas a parte humana de Jesus havia sofrido na cruz e, como se sabe, o sofrimento é uma parte muito importante da crucificação. Ainda mais importante era o fato de que se Jesus não fosse essencialmente Deus, tecnicamente falando não seria correto se referir à Virgem Maria como "A Mãe de Deus".
A idéia de que Jesus e Cristo eram dois em um era defendida por
Nestório, patriarca da cidade de Constatinopla e sua doutrina era conhecida por
nestorianismo. Já a idéia oposta, de que Jesus Cristo era homem
e Deus era defendida por
Cirilo (figura)
, patriarca da cidade rival de Alexandria.
Para decidir a questão foi convocado o Concílio de Éfeso, no ano de 431. Cirilo e seus partidários chegaram ao local do Concílio antes de Nestório e esmagaram a pequena oposição que já estava lá com ameaças que iam da perda do posto à excomunhão. Sem resistência, Cirilo decidiu a contenda e decretou que doravante o nestorianismo seria considerado uma heresia. Nestório
foi deposto e exilado no Egito, seus livros foram queimados e a Virgem pode voltar a ser chamada de Mãe de Deus em paz. Cirilo teve seus prestimosos serviços reconhecidos e foi mais tarde canonificado pela Igreja Católica. Hoje atende por
São Cirilo.
Nestório também não acreditava no
Purgatório, aquele lugar para onde vão as pessoas que precisam expiar um ou outro pecadilho menos grave antes de ganhar o direito de ascender ao Céu. Segundo Nestório ou o sujeito ia para o Céu ou para o Inferno. Não tinha meio termo. Se o nestorianismo não tivesse sido sentenciado ao esquecimento pela truculência de São Cirilo, talvez hoje o Purgatório não existisse.
Pobres almas... sem o Purgatório e agora sem o Limbo, estariam predestinadas a salvação ou a danação eternas. Sem meio termos. Dadas as opções não há dúvida que o Inferno precisaria ser um lugar muito maior do que hoje...